Eduardo Lourenço – no meu labirinto
Por Alexandre Honrado
Naquela tarde, o professor Eduardo Lourenço, com um olhar muito gaiato e um sorriso onde cruzava todas as ideias, desafiou-me para irmos procurar estátuas de Karl Marx e, a seus pés, a seu lado, numa perspetiva de enquadramento que nos fosse favorável, nos fotografássemos e guardássemos. Acedi. A Eduardo Lourenço acederia a todos os caprichos, era daquelas pessoas que ao dirigir-me a palavra me cortava a respiração, não sou de ídolos nem de iconoclastias, houve no entanto um punhado de mulheres e homens neste mundo que escolhi como faróis orientadores – isso é o que fazem os filhos e alguns deles adotara-me. Estávamos dessa vez e Chemnitz, na Saxónia, Alemanha, que se chamara durante a ditadura soviética Karl-Marx-Stadt.
Eduardo Lourenço, já octogenário, chegara de madrugada, fazendo uma direta, porém mais fresco que muitos dos jovens em seu redor. Estávamos ali para um Congresso onde, de forma pretensiosa, era suposto refletir os caminhos da Europa, começando lá atrás, chegando ao que pudesse ser – e, sendo, que não fosse o que hoje é –, a vontade comum a muitos dos presentes.
Quando chegou a vez de Eduardo Lourenço proferir palavras, a sala encolheu-se, não chagava para todos.
Lourenço falou de seguida naquilo que para ele nunca era um improviso, frases de poeta que julgámos sempre ser filósofo. Falou em francês. Antigamente era a grande língua.
A plateia, de todos os pontos do mundo, não se fez rogada. Eduardo tinha esse condão dos seres mágicos e iluminados, pegava os humanos entre o polegar e o indicador da atenção e levava-os num enredo sublime. Era e é difícil discordar dele. Conheci há tempos um historiador abespinhado: Eduardo Lourenço não deve ser citado em trabalhos objetivos! Nas costas desse historiador rimos muito, compadecidos. Até a poesia filosófica do mestre é mais objetiva que um punhado ressuscitado de fontes, resgatado a algum arquivo.
Naquela tarde fomos à procura de Marx e rimos também. Se o economista alemão voltasse à terra teria de rever boa parte da sua obra. Mas é nisso afinal que reside o fascínio: pensar que o pensamento nunca é imutável.
Ao fim da tarde tomámos um café. Sem beber, Eduardo mexeu o líquido castanho extraindo-lhe uma espuma quase branca, olhou para o efeito, começou a interpretá-lo, como se visse cristas de mar imenso, nuvens de céu, povos em conflito. Não sei quanto tempo se passou, mas ficarei para sempre com aquele momento, o primeiro que depositei enormemente entre todos os que, sempre escassos, privei com ele.
A última vez estivemos, junto à Gulbenkian, aproveitando o sol, a sua mantida lucidez espantou-me.
Quando as coisas se estendiam e o cansavam, havia nele um gesto muito típico, de juntar as mãos e descansar o rosto nelas, uma espécie de afago próprio. Se não formos capazes desse gesto, como gostar de nós para depois poder gostar dos outros? Lembro-me de tê-lo fotografado assim, numa sessão de ideias, na Mesquita de Lisboa. Ele de olhos fechados, o rosto sobre as mãos, os pensamentos do lado de lá de todos os presentes. Dormiu? Que não! E falou-me de tudo o que se tinha dito e discutido com pormenores que nenhum dos outros, de olhos abertos, tinham notado.
É assim que quero recordá-lo.
Acreditem que esta síntese está muito distante do que me deu a viver. E dá.
Folheio agora O Labirinto da Saudade, o título mais icónico. Também por me ver nesta orfandade, perdido num infinito labirinto de tanta saudade!
“Dos caldos de portaria ao burocratismo apoplético do século XX corre um fio que, por escondido, não é menos grosso e grávido de consequências.”
Quem nos viu como Lourenço?
Escrevo a trincar lágrimas teimosas. Foram muitas dezenas as conversas com o Mestre. Creio que não abri a boca em nenhuma delas. Ficou-me nos silêncios aquele ruído-riso de estrelas.
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